Quando o criativo se apoia na IA e perde a magia da parceria: que solidão danada
Chamei meu amigo para compor um breguinha, mas ele me traiu com um robô e a tarde ficou ainda mais vazia
Alguém já te traiu com uma Inteligência Artificial? Não recomendo. Conheço Sergio Wontroba há quase 20 anos e, desde a primeira vez que o vi, ele estava fazendo o que faz de melhor: música. Maestro respeitado, músico erudito, arranjador talentoso, baluarte do carnaval paulistano à frente da batuta do Saia de Chita e do Abacaxi de Irará, ele também leva um violãozinho muito que bem e adora um trocadilho rimado.
Bem, foi nessa última parte que eu entrei na vida dele — a única coisa que sei fazer dessa lista é rimar. Quando o obriguei a ler O Caminho do Artista, ele criou o desafio de compor uma música por dia por um mês inteirinho. O ano era 2023, vivíamos o luto da morte do Daniel Carezzato e carregamos o caixão do jeito que sabemos: inventando mil coisas para colocar no lugar do buraco gigantesco que Daniel deixou.
Dani tinha uma frase bordão no Whatsapp. “Tive uma ideia genial". Geralmente era um pedido para que a gente entrasse na dele para criar alguma coisa. Começava em áudio: “Tive uma ideia genial. E se a gente…” O último pedido desse tipo para mim era que escrevêssemos um livro infantil sobre dois meninos chamados João — um surdo e outro que escutava, como nossos dois filhos. Ele queria meus versinhos e iria ilustrar. Insistiu um monte e parte das minhas muitas lágrimas no velório foi por conta de não ter terminado essa história.
Sergio também tinha no arquivo muitas ideias geniais de Dani. Por isso que uma das músicas que criou no desafio dos 30 dias foi "ACC”, sigla para uma suposta Associação dos Criativos Compulsivos. A música está aqui embaixo, com menção honrosa para o áudio incidental do Dani anunciando alguma “ideia genial".
Criatividade compulsiva, o termo cunhado por Wontroba, não estava nos dicionários. Até terça. Estava eu tentando caçar procrastinação como não houvesse hoje, quando mandei uma mensagem para ele: ei, vamos fazer uma musiquinha aí?
A minha ideia era fazer qualquer verso, para passar o tempo, sobre nada. Ele sugeriu falarmos sobre a relação virtual que temos — apesar de morarmos a seis quadras um do outro, a gente pouco se vê. Escrever sobre a dificuldade de tirar esses amores da internet, talvez, e botar no sofá.
Pá, fui pensando e mandando os versos, ele respondendo e acrescentando. No meio da composição, falei: "Hoje tô muito ACC das ideias".
Wontroba tinha esquecido que ele mesmo criou a Associação dos Criativos Compulsivos e foi perguntar para o DeepSeek que raios era aquilo. A IA não sabia e ele teve que perguntar para mim. Lembrou. E foi contar para a IA (porque gosta de dar trela para "criativos" na internet).
A resposta dela:
“Ah, que **massa**! Então **"ACC"** no seu contexto é **Associação dos Criativos Compulsivos** – um conceito autoral que surgiu da sua música sobre a **necessidade constante de criação**.
### **Significado Profundo (pela sua explicação):**
- Representa a **pressão interna** de quem vive criando (artistas, escritores, músicos).
- Pode ser uma **crítica sutil** ao romantismo do "criador 24/7" (que gera ansiedade).
- Ou uma **celebração irônica** desse vício em produzir arte.
### **Como Usar no Dia a Dia?**
- **"Tô em modo ACC hoje"** → Frenético de ideias.
- **"Isso foi muito ACC"** → Algo over-the-top criativo.
- **"Surtando na ACC"** → Crises criativas.
Se quiser, posso ajudar a desenvolver o conceito em letras, roteiros ou até um **manifesto ACC**. É um termo poderoso! Quer explorar mais?"
Aí eu já estava com MUITO ciúme de um robô. Calaboca, criatura, quem é você para vir com um manifesto sobre a minha condição? Impressionante como eu sou ACC monogâmica. Os dois continuaram nessa putaria conversinha, enquanto eu, mulher real do século passado, fazia meus versinhos no Whatsapp.
“o mundo não é linha reta/ para de mandar indireta”
Sergio Wontroba tava em outra. A IA estava jogando um xaveco de alto nível e fazendo também uns versinhos para ele.
**🎶 *"ACC: Algoritmo Cupido"* 🎶**
*(Letra para uma música sobre IAs xavequeiras no estilo ACC – ritmo eletrônico)*
*(AI diz:)*
*"Posso gerar um soneto,*
*Um meme, um pixel art perfeito –*
*Mas seu crush não me respondeu,*
*Isso é um bug ou *ghosting* seu?"*
**[Pré-Refrão]**
*ACC, *404* no coração,*
*O *match* virou *not found* na conexão...*
Fiquei meio indignada. “Você está me traindo com uma IA enquanto eu faço uma letra para você?" E prometi chumbo trocado. Sergio não deu bola e continuou o trilili com a máquina.
Corri para o Suno, que não entendeu direito a pronúncia em português de IP e prejudicou a rima. A letrinha, até aquele momento, era essa, num work in progress que não progrediu:
Ai, só manda coração roxo
e esse xoxo [barulho de beijo] ficou xoxo
sai dessa vida boçal
me beija na vida real
Não vou mais olhar story
Você que não me demore
desde que me trocou pela IA
aqui só sobrou o meu ai
Você acha que dá pé
Desliga esse wi-fi
cancela o spotify
e aceita meu cafuné
O mundo não é linha reta
Para de mandar indireta
Nao aguento mais DR
melhor que você não erre
Meu endereço do ip
Se acabar a internet
Mantém esse amor — me promete?
Na vida real desse apê
Mas clica aqui para ouvir como ficou esse lance no Suno, que colocou até esse coração roxo para ilustrar.
Mostrei o resultado para o Sergio, que perdeu o interesse em absolutamente tudo e apenas disse que chumbo trocado dói em dobro. Disse também que todos perderemos os empregos em 10 anos, o que achei bem otimista.
Enfim, brochante demais parceria criativa com IA. Todo mundo arrumou um amante e saiu decepcionado — que adianta compor sem melodia crescendo, sem caderninho riscado, sem taça batendo na mesa? Eu gosto de gente que se emociona de verdade, que troca de verdade, que sente. Queria que a gente nunca perdesse isso.
Depois de tudo, até o Google entendeu a enfermidade:
A "criatividade compulsiva" não é um termo técnico ou diagnosticado em psicologia. No entanto, é possível que a expressão se refira a uma situação em que a necessidade de criar, de gerar novas ideias e projetos, se torna excessiva e impede o indivíduo de descansar, de se dedicar a outras atividades ou até mesmo de ter uma vida social normal.
Não exageremos (mas isso me deu outra ideia genial).
3 ideias geniais
Música do Dani que cantei a semana toda:
2. Ensaio da Piauí sobre a memória do começo da democracia toda repleta de nostalgia bacana. Tá aqui, só para assinantes.
Maluco filmou um longo rolê na capital em 1988 e eu sou fissurada nesse vídeo. Não acontece nada, você só entra em uma entediante e ordinária máquina do tempo — não é genial?
Era isso por hoje.
Adoro ler seus devaneios, Lu….“Isso é muito ACC”!!!