Qual o próximo megashow? A gente não consegue lidar com o fim da catarse
Depois de dias de ansiedade e toda a energia focada em torno do acontecimento Lady Gaga em Copacabana, voltar para a rotina é um desafio complexo de equilíbrio entre tédio, maturidade e saúde mental
Minha primeira matéria complexa de comportamento e neurociência era o desdobramento de uma pesquisa que cravava: ninguém sobrevive a mais de seis meses apaixonado. Ali, no começo do século, em fotografias cerebrais, os estudiosos provavam que o caos desse estado ~delicioso~ de apaixonamento é nocivo para a saúde quando o tempo passa. O que dá para entender. Com sintomas que parecem doença — taquicardia, ansiedade, insônia — não dá para dizer que o começo de um novo amor é exatamente pacífico. Mas como a gente vive sem isso?
A algazarra de emoções acerca do megashow de Lady Gaga, no Rio de Janeiro, me lembrou essa reportagem. Estive em muitos eventos grandes nas areias de Copabacana antes. Mas não há Stones, Gil com Steve Wonder, a própria Madonna no ano passado, ou inúmeros e catárticos Réveillons que se comparassem à euforia provocada pela cantora escolhida nesse 2025.
Dá para traçar um paralelo dos efeitos da paixão e a devoção causada pela artista que representa quem não se via representado. Os esquisitos, os quebrados, os que gritam, os que foram machucados, os que sentem demais.
Dizemos marginalizados aos sentimentos que não são acolhidos, mas Lady Gaga em Copacabana rompeu o paradigma: não dá para dizer que 2 milhões de pessoas estão à margem. Ali, nas imagens aéreas, elas e suas dores invisíveis eram o próprio mar de gente, margeados pelos Atlânticos (o oceano e a avenida), meros, apesar de gigantes, coadjuvantes.
Finalmente, o fã que não acha muito bem o próprio lugar vira protagonista de si. Num oásis, epicentro da cultura do mundo por algumas horas, onde tudo que sente é validado por uma diva que sente coisas muito parecidas. Como é bom estar acompanhado por quem nos sabe ler.
O estado de apaixonamento é ser visto. Quando, pelo olho do outro reciprocamente encantado, você vê o melhor de si. E gosta do que vê. E quer mais. Paixão é o que nos dá a sensação de estar vivos. A gente sempre está vivo, claro. Mas o automático de ligar a cafeteira toda manhã tem um quê zumbi que é enfadonho. Quando a gente liga a cafeteira para quem nos vê, o jogo é outro.
Gaga olhava para o mar de gente como quem diz: eu vejo vocês. Nem todo mundo podia vê-la direito, mas tentava, escalando a estátua de Princesa Isabel na avenida de mesmo nome, a mais de um quilômetro da cantora. Mas todos se sentiam vistos, validados, entendidos. Que alívio.
"Vou te amar toda noite como se fosse a última", cantavam pulsando o verso do hit número 1 do Spotify global, Die With a Smile. Quando a gente dorme a acorda pensando em alguém, morre sorrindo mesmo. E “quer o drama, o toque da mão, o beijo na areia”, como em Bad Romance. Aliás, não tem feiúra ou doença que afaste, como diz a letra. E tem lá romance ruim? (Tem, mas o apaixonado nem liga.)
Quando Gaga martela o piano com as mãos em Shallow, vejo o mar em uma das tantas imagens aéreas revolto, com em todos os dias anteriores. O pertencimento é pleno: a praia que conheço bem, a geografia do bairro mais famoso do Brasil, as esquinas em que vivo histórias desde a adolescência, os versos da música que me tocam profundamente.
Tell me something, girl
Are you happy in this modern world?
Or do you need more?
Is there something else you’re searching for?
Gaga esmurra as teclas como quem sempre vai estar procurando por mais porque é dessas que se permite sentir (“e nos maus momentos, teme a si mesma”). “Você precisa de mais? Não é difícil segurar todo esse peso?". O mar bate e volta, 2 milhões de pessoas berram. A gente se entende tentando chegar à superfície, mergulhando e se debatendo, mas sem parar de nadar — Lady Gaga está em pé ao piano, se fosse fisicamente possível estaria levitando com ele e sendo carregada pela voz de uma multidão enorme, que também é a voz dela em eco. Nada é mais potente do que ser autorizado a sentir coisas.
A paixão é isso. O sexo também. Cantar o mesmo lalala que milhões de pessoas enquanto o mar arrebenta ao lado do arrebentado coração da gente também. Toda catarse mexe com o corpo e mente e alma de um jeito viciante.
Eu nem peguei a Dutra e meus amigos estão no Whatsapp cogitando qual o melhor próximo mega artista para o próximo megashow que vai mexer desse jeito com a gente de novo. Lidar com o fim da catarse, como o fim da paixão, é um eterno querer mais. “Tem algo mais que você esteja procurando?", pergunta Gaga estupefata com a reciprocidade de sentires. Tem sim, a gente responde para si mesmo: a gente quer sentir tudo.
No fim, a queima de fogos fora de época transforma aquela imensidão num templo contemplativo. E agora que a gente viveu tudo isso? Como é que volta para casa e liga a cafeteira de manhã como se nada tivesse acontecido?
Meu direito de sentir demais, à beira de um piano, expressando tudo em batidas fortes nas teclas. O artista — isso é impressionante — é um híbrido de nós, em todos significados dessas três letras na língua portuguesa.
Arrebatando. Arrebentando, como o mar. Arrepiando nas outras tantas mil vezes em que assistir o vídeo (minha pele é meu termômetro de emoções e eu sou, ainda bem, emocionada demais).
Esse foi um grande dia. Viver talvez seja a espera da próxima catarse.
3 trechos legais que tem a ver com o assunto e um episódio mais ou menos
Oração para desaparecer, de Socorro Acioli
Fiquei arrebatada também pelo romance, pela possibilidade de “aprender a viver em estado de sim” (e de desaparecer também).
a)
b)
c)
Eulogy, ep. 5 da temporada 7 de Black Mirror — é legal, mas não tudo isso.
É bonito pensar em rever as encruzilhadas da vida e pensar nos atalhos errados que pegamos, mas não ajuda muito na prática. Bom seria entrar nas fotos e corrigir as rotas.
Achei o dito melhor episódio de Black Mirror da temporada bem qualquer coisa.