O que sobra quando eu tiro o álcool da vida por 47 dias
Sober shame e sistema de recompensa quebrado: água com gás, chazinho e muitos livros para segurar esse rojão sem a cachaça
“Ela não entra em uma igreja desde sabe-se quando, mas na quaresma vira beata", eu os ouvi falando sobre mim. O churrasco tinha excelentes vinhos tintos. Não estava lá muito fácil lidar com a vontade de experimentar um tal 5 estrelas uruguaio do qual todos estavam falando e lidar simultaneamente com nível etílico crescente da galera. A chacota era o de menos no contexto em que, depois de seis horas de festa, tudo fica meio chato para quem está vendo as coisas como elas realmente são.
O sober shame, expressão em inglês para o costume de dar aquela zoada em quem não bebe álcool nos eventos, é uma constante para mim por uns 40 dias por ano. Antes que alcohol-free fosse hype, eu já me dedicava às abstinências anuais e lá se vai mais de uma década. E ok, eu consigo facilmente parar de beber, não tenho uma ligação de dependência com a substância e posso, inclusive, decidir voltar quando quiser – visto que sou maior de idade e a bebida é legalizada.
É claro que não dá para banalizar o tema. Existem pessoas que são alcoolistas, a doença que nunca deixou de ser assunto mas está mais em voga ainda com o retorno da personagem Heleninha Roitman, agora interpretada por Paolla Oliveira, na nova versão de Vale Tudo. A questão é que mesmo sem beber todo dia ou precisar disso para ser feliz, eu gosto de repensar o consumo de uns bons drinks de tempos em tempos e ver a vida como ela é. Spoiler: às vezes a vida é meio chata.
Paolla também entrou na onda logo depois do Carnaval para viver a personagem na TV e, publicamente, recusou uns contratos com marcas de cerveja. Disse também em entrevista para O Globo que aprendeu a deixar de fazer algumas piadas do tipo: “não confio em quem não bebe". A entrevista toda está aqui e as fotos do Gil Inoe são incríveis.
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Não tem muita novidade. Todo ano, começo a abstinência etílica na quarta-feira de cinzas e termino idealmente na Páscoa. Como realmente não tenho compromisso religioso posso voltar quando quiser, mas acho interessante essa teoria católica da privação. Na prática, quem manda sou eu: o álcool não dita minha alegria com meus amigos, nas festas, ou não pauta meus compromissos sociais durante um (longo) período do ano. Ok, mas o que sobra?
Depois de um dezembro intenso de confraternizações, um verão animado com coolers carregados e um carnaval com os dois pés chutando baldes aleatórios, é natural que o corpo peça um detox saudável por um tempo. O resultado físico é desinchar, ressacas zeradas, mais disposição e – quem sabe – uma cabeça vazia que seja oficina de algo bom. Me enganei nessa parte, porque a cabeça ficou mais cheia do que nunca.
Na prática, nesse 2025, fiquei mais animada para esportes em geral. Faço regularmente musculação e pilates. Andava relapsa com Ioga, mas nesse período voltei com tudo e com aquela sensação de por que eu parei? Arrisquei mais na esteira e corri (devagar, mas corri) alguns dias. Saldo positivo. Ok, ponto para meu corpo das manhãs sem ressaca, menos enxaqueca e muito mais leveza.
Por outro lado, o sistema de recompensa quebrou. Sem a bebidinha para relaxar, por muitos dias não sabia bem o que fazer para desligar das chatices da rotina. Não quis nem ir em meu restaurante favorito porque não fazia sentido comer o tartar sem o bloody mary. É, complicado se desvincular de rituais.
Fui experimentando as trocas. Troquei o chopp por água com gás com limão espremido – surpresa, gostei!--, troquei o malbec por chás gostosinhos como o de limão com gengibre e uma fatia de bolo, um cookie, uma bolachinha. Sim, uma senhorinha que vai ferver sua água e coloca um sachê na caneca. Nela, inclusive, está estampado o recadinho amoroso “mas eu não tenho um minuto de paz nesse caralho”. Um pouquinho de ordem, um pouquinho de caos.
O sistema de anestesia da vida também deu uma rompida. Sem um gole de vinho para amenizar, como a gente para de pensar no que pesou? Não tinha como. Chico Buarque estava certíssimo ao dizer que também sem a cachaça ninguém segura esse rojão. Sem ela e com o rojão estourando na mão, o jeito era fazer respiração bariátrica e me entregar àquele velho programa que sempre passa no meu cérebro: o que fazer quando seus pensamentos não te deixam pensar. Ou talvez ao…
Ébria x inebriada
As manhãs começaram ainda mais cedo em março. Disposta, já ia para a sala antes do nascer do Sol, carregando um livro nas mãos. À noite, meu chá (já experimentou o de camomila com maçã e canela?) embalou filmes e séries. Teve teatro também, no lugar do boteco com a galera — agitei menos rolês do que costumo fazer. E exposição no meio do expediente (ser empresária de si mesmo há de trazer alguma vantagem). No fim das contas, eu me anestesiei de arte. Muita arte. E continuei sóbria.
Walter Casagrande já havia falado disso e acabei escrevendo uma coluna no UOL sobre o assunto. Arte salva. No dia da publicação, ele me escreveu falando sobre a importância de sempre divulgar a arte para mais gente. Logo depois, eu esbarrei nessa frase da Rosa Monteiro: “Todos precisamos de beleza para que a vida nos seja suportável".
Na exposição Um Defeito de Cor, no Sesc Pinheiros, logo na entrada: “Isto: eu me reinvento e reelaboro tudo ao meu redor cada vez que o mundo que crio e interpreto por meio da arte encontra-se por outro mundo criado por artistes que têm as suas coisas nos mesmos lugares que as minhas coisas também estão". Uia.
Parecia que o mundo estava me preparando para tirar o álcool e encher de todo o sentimento do mundo, como diria o poeta. Que surpresa: no lugar de sacrifício, foi uma delícia.
Na Páscoa, devo abrir uma garrafa que acompanha o tradicional bacalhau da minha mãe e voltar com parcimônia a curtir assim também o resto do ano — corta para ressacas de 12h, pois não prometi coerência para ninguém.
Para quem anda ligando demais o álcool à vida social, deixo aqui umas dicas de consumo offline de arte que inebria bem demais. Não precisa entrar na igreja (se quiser pode), mas um pouquinho de privação é legal para repensar a vida, sim.
3 coisas legais e uma mais ou menos
O que resta a partir daqui, da Flavia Braz
O irresenhável livro da minha amiga que traz o fluxo de pensamento com uma ternura sarcástica típica daqueles que conhecem a dor. Todo dia eu penso na protagonista. Terminei tão arrebatada que tive que ler uma “ficção de cura” japonesa sobre gatinhos para voltar ao corpo. A Flávia, aliás, tem uma News ótima: Apagar para Todos
A verdadeira dor, na DisneyPlus
Sabe aquele alguém que parece ter tudo? É ali que também falta algo. A busca é também um jeito de existir. Achei tão bonito. Disseram que Kieran Culkin faz o mesmo papel de Succession mas não posso opinar porque NÃO AGUENTEI VER ESSA SÉRIE CHATA (sim, estou polêmica).
Isaac Julien: Lina Bo Bardi — um maravilhoso emaranhado
No prédio novo no Masp, a videoinstalação com as Fernandas Montenegro e Torres é uma experiência absolutamente inédita. Uma dezena de telas espalhadas na sala escura narram a vida de Lina Bo Bardi em diferentes ângulos do mesmo take. A frase sobre o tempo linear vai me acompanhar para sempre e meu cérebro ecoa a voz da Fernandona. (No mesmo prédio tem uma exposição chamada Geometrias que é lindíssima).
Mudar: método, do Édouard Louis
Eu estava meio indignada com o hype do francês mas insistindo na leitura, até que esbarrei nessa frase: “Meu privilégio era o de ter conhecido a vida sem privilégio". É meio meritocrático, meio esnobe, mas meio real também. Mas como a frase só está na página 145, dá tempo de ficar bastante irritada antes. Luciana está criticando o hype do hype do hype na literatura? Como ousa? Ah, sou ousada, sim.
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Termino com uma foto do show do Gil nesse sábado (12), uma apresentação que mistura tudo que falei aqui: inebriar-se sóbria, arte e um pouquinho de Deus também. Esses têm sido dias bons. Já tentou?