Mas, afinal, a gente deve falar o que pensa?
Como o livro de Tati Bernardi mexeu com sentimentos que contenho e me deixou cheia de inveja
Meu filho ganhou um presente repetido. Chegou com o pacote em casa, cuidadoso: “eu não falei nada, viu, mamãe, só agradeci". Oito anos de idade e já está dentro dele que há verdades que não se diz sob o risco de magoar os outros. O que ganharia João de responder o adulto carinhoso com um pacote nas mãos: “ih, tia, devolve isso aí, já tenho faz tempo"? Nada. O que ganhou João ao preservar com educação (é educação que chama?) o presenteador com um sorriso grato e vir direto para casa perguntar se era possível trocar, só para mim?
Fui criada para não botar problemas nos sentimentos dos outros. Não vejo muitas questões na reação de meu filho porque provavelmente o ensinei a se portar assim. Não gosto de decepcionar gente. Não suporto a sensação de constrangimento nem na TV, na ficção, quanto mais ao vivo, com gente querida. Vivo uma fantasia utópica em que batalho para todo mundo ficar feliz e gostar de mim. Obviamente o negócio degringola umas sete vezes por semana e eu janto a decepção alheia com um chazinho ralo que eu mesma faço com o sachê de ontem.
Deve ser por isso que li as quase 100 páginas do livro de Tati Bernardi incrédula. Apesar de ter jornalismo correndo nas minhas veias, sou capaz de entender que a autoficção não tem muito compromisso com a realidade — e acho isso lindo. Porém, a partir do momento em que se escreve, a ficção perde o posto de romance e, nesse caso, vira apenas “o livro da Tati Bernardi". Não é um diário. Não promete ser um relatório fiel de agruras. É apenas uma história que te chama a virar as páginas — podem falar tudo dessa moça, mas que escreve melhor que a gente, escreve. E o que se espera de histórias publicadas? Justamente isso.
Viro as 100 páginas incrédula por vários motivos. Eu sei o que é ter nascido a 30 km dos bairros que realmente importam nessa cidade. Eu sei o quanto é difícil estudar na mesa da cozinha com o barulhão de uma panela de pressão chiando o feijão dos três próximos dias. Sei secar batata antes de fritar. Sei escolher arroz. Eu sei o estigma que carrego com um CEP do ABC tatuado na testa. E eu também sei o quanto a minha pele branca abre portas — se o cabelo fosse liso talvez abrisse mais ainda. A coragem da autora de esfregar tudo isso em nossa cara é louvável.
A Boba da Corte, que é o nome certo do livro de Tati, causa identificação fora da bolha que escreve as críticas que você lê. O pessoal que saiu dos bairros nobres para estudar na USP, na Cásper, no Mackenzie, olha para a gente meio sem entender como é que pode alguém vir de bairros ou cidades periféricas tentando dar pitaco no que eles comentam em francês. Você pode ter um andar favorito no MoMA, ainda assim vai ter a proximidade da fábrica da Volks da casa de sua mãe como indicativo de confiabilidade.
Eu, nerd, tentei aprender a me portar como eles. Nunca deu muito certo. Aqui no meu currículo sempre vai ter o nome da faculdade privada suburbana em que estudei. Mas não está escrito ali que trabalhei desde os 17 anos para pagar a mensalidade (ser proletária desde o dia em que saí do colégio não quer dizer muito em francês — e eu nem sei onde se acentua Édouard — ele também trabalha desde então).
São incontáveis as situações em que me vi como a panela de pressão usada nas receitas de fricassê de frango que eu publicava “naquela revistinha” em que eu trabalhava — entre dezenas de títulos glamurosos na editora Abril, meu sonho sempre foi trabalhar na Revista AnaMaria, que custava R$ 1,99 em banca e era a publicação que mais vendia sem assinatura no Brasil. Já levei capa de AnaMaria para grandes diretoras de terninho Huis Clos aprovarem e elas riam nos títulos das receitas: “Liquidificador, né? Hahahaha, elas gostam disso, né?”. Sartre e Clô Orozco não gostavam de liquidificador, eu aprendi naquele dia.
Elas. As leitoras de AnaMaria. Disso. Um eletrodoméstico. Quem liga os liquidificadores para bater o suco verde fresquinho que magicamente está pronto todo dia de manhã? Minha leitoras. Vestidas de branco. Elas. Eu?
Os adultos aqui em casa — jornalistas periféricos não-uspianos, sendo que um deles é preto e a outra é mulher — leram o livro em uma sentada. Então a gente pode dizer o que pensa assim?, perguntamos um para o outro quando o liquidificador parou de fazer barulho. A gente pode dizer que os acha ridículos, mandar imprimir e publicar? Óbvio que não. A gente não é a Tati Bernardi. Não tem um terço da coragem dela. Apesar dos quase 30 anos de carreira e de nossos nomes conhecidos na mercado, sabemos que não dá para sair por aí contando que aquele chefe que vocês idolatram já me… ih, travou o teclado aqui. Não consigo contar o que sei porque eu tenho medo de cair e foi difícil demais escalar até aqui sem um sobrenomão no RG.
“Amigo, a chance de seu bisavô ter sido escravagista é maior que sua biblioteca”, diz a autora de A Boba da Corte, apelido que ela dá a si mesma sobre a tentativa de ser sempre tão engraçada a ponto de ofuscar o inofuscável (aliás, meu pai tinha Fusca) fato de não pertencer nunca, mesmo ali tão pertencida. Eu também tento ser engraçada o tempo todo. Jogo o carisma como moeda em fonte e sugo a mim mesma na tentativa de provar que, apesar de, sou talentosa sim. Apesar do que, Luciana? Do Jardim Hollywood? Do escadão do Anésia? Da quadra azul?
Eu me lembro de um amigo letrado em gastronomia de metrópole que sentou no barzinho de São Bernardo no qual o levei e deu uma palestra de uns 40 minutos sobre a qualidade inferior do guardanapo em espeluncas como aquela. Naquele dia, eu chorei.
Outro dia, recebemos amigos de berço em nosso apartamento de emergentes, no bairro nobre na capital. “Amiga, essa vista é o Central Park", disse uma das convidadas brincando. Eu sorri. Adoro essa vista. Mas sorri também porque tem gente que nunca vai saber como é bonita a vista do sol nascendo atrás da Villares, na divisa com Santo André, onde hoje fizeram aquele Carrefour.
Tati Bernardi me lembrou como é justamente esse passado desprezado por todo mundo que está sentado nos lugares em que quero sentar que me faz ser capaz de sentar ali também. Vocês digam o que quiserem da autora. O livro que ela escreveu é ótimo.
Se dá para falar a verdade como a obra propõe? Eu não consigo. Ainda. Não é que parece o Central Park mesmo se olhar aqui desse canto?
3 coisas legais e uma muito ruim
Entrevista do Carrère na Quatrocincoum de fevereiro
Ele discute um pouquinho a história da autoficção aqui.
2. Que tal um samba?
Dica velha também, mas hoje me bateu diferente porque a versão de palco com a Salmaso tem a força do público no Spotify. E, apesar de ser uma letra sobre o Bolsonaro, ouvi depois de criar casca e perder a ternura com outras coisas. Esses versos aqui valem para qualquer dor que dói.
De novo com a coluna ereta, que tal?
Juntar os cacos, ir à luta
Manter o rumo e a cadência
Desconjurar a ignorância, que tal?
Desmantelar a força bruta
Então, que tal puxar um samba?
Ainda tem incidental Samba da Bênção e Samba da Minha Terra. Eu lembrei que muita coisa me derruba, mas o samba me levanta sempre.
O céu da língua
A peça do Gregório é maravilhosa e tem um pouco a ver com o texto acima na necessidade de falar palavras bonitas e mostrar talento, conquistar as pessoas, para depois poder grunhir a dois. Gostei demais.
A muito ruim
Depois da agonia de ver a boçalidade da influencer na CPI das Bets, você já pensou em fazer uma limpa nos influencers que você segue? Só 24h no dia e a gente gasta sete delas em média com bobagem. Escrevi sobre essa tristeza aqui.
Um samba depois da dor filha da puta pra encerrar:
“Deitar na cama da amada e despertar poeta
Achar a rima que completa o estribilho”