Eu sou a moça na Indonésia e tantas outras moças quando tudo me dói
Como é complexo domar a sensibilidade excessiva e tentar fazer com que as dores dos outros doam menos para caberem as nossas próprias dores (ou alegrias, vai que)
Estou na aula de pilates fazendo um agachamento em que uma das minhas pernas fica alongada, pendurada e só a outra dobra. Meu peso está sustentado pela coxa direita. A professora explica sobre o enxofre. Juliana, a garota que fez tudo certo em uma viagem incrível pelo mundo, ainda não havia sido encontrada, mas minha professora (que também chama Juliana e também faz trilhas) dizia que apesar de inativo o vulcão, há enxofre tóxico no solo. Se sobrevivesse sem comida, abrigo e água, Juliana seria intoxicada. Eu quase caí do aparelho.
Ontem li o Gabeira falando algo que venho pensando há tempos. “Escritores têm uma característica comum: o impulso irresistível de se colocar no lugar do outro. Logo, não importa onde estoura uma guerra, a tendência é estar mentalmente no teatro de operações."
Há dias me sinto como Juliana, em uma imagem de drone, paradinha em um buraco. Imóvel. Por todos os dias da busca pensei que ela poderia, naquele momento, estar poupando energia. Ninguém queria que Juliana estivesse morta. Ela estava se sentindo tão viva…
Eu estou dentro de um buraco de difícil acesso, estou sem comida e água e, nem sabia, mas agora sei, também estou sendo envenenada pelo ar. Não sei quando Juliana não resistiu, não sei quanto lutou, sinto dores de todas as possibilidades que imagino.
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Um carro avança sobre uma pedestre na calçada que bate no capô várias vezes. Estou vendo a imagem na internet, mas sentindo a dor da porrada na palma da minha mão. É uma imagem de câmera de segurança, tento identificar se é no Brasil. Se for, sou eu. Mas eu não fiz escândalo recente com carros que avançam no meu caminho, eu penso. Será que fiz? Certeza de que sou eu. Fui filmada. A moça avança até a porta do passageiro e dá chutes. O vídeo é mudo, mas eu escuto o meu QUEQUIÉ urrado. Ué, não dou chutes. Talvez dê. Comento o post: chequei muito até concluir que não sou eu. Um amigo comenta embaixo: sua bicuda é mais forte que a dela. Eu sou a moça que chuta portas de carro indignada com a falta de respeito dos motoristas ao pedestres, apesar de nunca ter chutado nenhuma (o tapão no capô cansei de dar).
Mas peraí.
E se eu for a motorista? Distraída. Apavorada com a pressão da vida. Triste com a morte de Juliana. E se eu quase atropelar alguém sem querer porque sou falha, porque não dirijo tão bem quanto faço risoto, porque me distraio o tempo todo, porque faço demais?
Eu estou quase chorando dentro de um carro, tem uma mulher descontrolada agredindo a lataria, eu quero acalmá-la, eu peço desculpas, eu a entendo, mas eu também tenho medo dela.
Eu não acho nada engraçado (que sujeito chato sou eu).
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Eu estou andando na rua em outro vídeo, olhando o celular. O portão elétrico de alguma casa fecha, eu me atrapalho e quando vejo estou trancada dentro da garagem de um desconhecido que não sei quando volta. E se tiver um louco armado lá dentro? E se tiver cachorro? E se acabar a bateria do meu celular? E se… na internet tem muito vídeo.
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Eu queria saber sentir menos para poder rir com distanciamento de alguma coisa, mesmo que não tenha muita graça.
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Em 2014, passei um fim de semana em Palermo, na Sicília. O avião chegou na ilha à 1h da manhã de um sábado. Não tinha taxi. Quando encontrei um, alta madrugada, ele falava coisas sobre a máfia em um italiano muito rápido, me olhando pelo retrovisor com um olhar de… sei lá, um homem de meia idade do sul da Itália. Tive medo.
Ele me deixou no lugar onde ia ficar — um hostel na cobertura do apartamento de um cara — mas ninguém abria a porta. Eu fiquei uns 40 minutos sozinha, de madrugada, tocando uma campainha no meio da rua de Palermo. Estava bem escuro. Não passou ninguém ali (ainda bem). Eu nunca me senti tão vulnerável (nem internet tinha no celular naquele tempo).
Até que abriram a porta. Eu subi. O quarto era perfeito. O cara era legal, casado com uma moça legal, com uma filhinha que hoje é adolescente e, pelo que vejo no Instagram, virou bailarina.
Há tantas histórias com final feliz a sorte das viajantes solitárias que sobreviveram.
Mesmo assim, as dores que Juliana sentiu não param de doer.
Só 3 coisas legais porque tinha uma muito ruim mas eu esqueci (juro)
Matt and Mara, filme no Mubi
Uma amizade de escritores canadenses cheia de significado. Só que ela é casada e isso complica alguns significados (aqueles que fazem a gente deitar sem roupa com os outros.) São boas as discussões sobre escrita e melhores as sobre responsabilidade afetiva. O filme tem nota ruim pra todo mundo, mas adorei.
Um amor inesperado, filme na Prime
Síndrome do ninho vazio argentina — me diz por favor para onde vai o meu amor quando o amor acaba? A difícil missão de aceitar que não está mais apaixonado. Ou não aceitar e se apaixonar. Ou ambos. Que enrosco.
O amigo, de Sigrid Nuñez
Falando em se colocar no lugar do outro, o livro conta a história de uma escritora cujo amigo se mata e deixa um dogue alemão gigante para ela cuidar em um apartamento de 50 m (sendo que ela é uma cat person). Tem frases ótimas. Vou na discussão sobre o livro na Bibla Bibla daqui a pouco, aliás.