Dois numa moto: vão-se os aneis, ficam os traumas?
Quando a falta de segurança pública fica escancarada em um assalto à mão armada no meio da rua, às 10h da manhã, resta o gostinho amargo da liberdade subtraída
Ninguém diz isso é um assalto, como nos filmes. Eram 10h da manhã. Eu não não sei o que eles disseram e demorei para entender que queriam a aliança. O revólver ajudou a sinapse.
Ouvi meu marido dizer “não é de ouro", na tentativa de manter a dele, de ouro branco. Ele deu uma olhadinha dentro, na numeração de quilate gravada. “É ouro, sim". Era mesmo. E já era.
Pediu celular. Eu disse que não estava comigo (estava). Fiquei olhando o revólver. Mentindo para o ladrão e olhando o revólver. O ladrão perdido, coitado. Armado. Coitado, nada. Mas coitado. Coitado? É possível uma hora dessa sentir o meu sentimento e o dele?
Meu filho dentro do carro. Eu na calçada, entrando no carro. E se quisessem o carro? Como eu ia tirar o menino do carro? Eu pensava e mentia. Moço, não leva minha aliança, não.
Eu adorava minha aliança. Eles levaram embora. De onde saiu essa de gostar de joia? Eu tenho vergonha de falar em voz alta que um pedacinho de metal possa custar tão caro. Coloco miçangas no lugar.
“Não faz besteira", eles dizem. Vão embora. E voltam. Acham que meu marido é policial. Arma de novo. Mandam levantar a camisa. Ele não está armado, moço. Eles revistam. Acham o celular. “Dá a senha.” Ele mente que só abre facial. O revólver vira pra mim. “Dá a senha”. Ele diz os 4 números.
“Abriu?”, o piloto da moto pergunta para o do revólver. Eu vejo a tela do celular aberta. As fotos. O email. O Instagram profissional dele, com 100 mil seguidores. Tudo vale dinheiro, algumas coisas valem afeto. Tudo era nosso. Eu realmente gostava da aliança.
Eles vão embora.
Ficam os dedos, que tremem. Abro o carro para tirar o João de dentro e voltarmos para casa. Minha sogra está paradinha escondida na garagem. De olhos fechados. Esperando o tiro. Não teve tiro. Meu filho finalmente chora, eu tranquilizo.
“Tá todo mundo vivo”. Vai começar a saga dos bancos. Das contas. De tudo. A gente arruma. “O material a gente recupera". Mil clichês por segundo.
“Mãe, eu estou sentindo medo de sair de casa”.
“Então, filho. A gente não pode deixar eles levarem também a nossa liberdade”, eu digo bem calma.
Mas eu também estou com medo de sair de casa. A minha liberdade, eu sei que eles já levaram.
Será que faz sentido que viver na maior cidade da América Latina seja um eterno sobreviver?
O vídeo da câmera de segurança da rua tem 1 minuto e 24 segundos. Mas eu não aguento ver, não.
PS.: Special thanks aos amigos que tinham o choppinho e o abraço e tiraram um sábado incrível da cartola. A vida é preciosa demais.
Que bosta, Lu. Um abraço.
😢