#3 Você precisa mesmo desse diagnóstico de transtorno?
A psiquiatra que fala sobre o quanto rotular a si mesmo trava mudanças que a gente precisa fazer para viver em sociedade

Tenho um incômodo com qualquer discurso que começa com “eu sou assim”. Pode ser inveja: 42 anos depois, não tenho lá muita convicção de quem eu sou e estou a um passo de cantar a metamorfose de Raul logo no primeiro parágrafo. Pode ser também uma vontade muito grande de ser melhor — o que nem sempre dá certo. O fato é que eu acho chato usar defeito de crachá e não tentar melhorar. Sou assim e está ruim? Peraí, vamos dar um jeito nisso.
A autoconhecimento é um trunfo daqueles, mas usar isso para desculpar as próprias mancadas parece meio infantil. Dispenso.
Ou estaria aqui dizendo que sou barraqueira (sou mesmo) em vez de fazer 40 respirações e não gritar o tanto de vezes que queria. Que sou violenta, em vez de controlar meus fortes ímpetos de agredir quem faz bobagem e manter o réu primário. Que sou impaciente, em vez de esperar calmamente as pessoas LERDAS fazerem alguma coisa que eu faria em poucos segundos. Sou tudo isso, não nego, mas vivo escondendo esse eu aí porque ele incomoda um pouco os outros.
Se cada vez que eu tiver medo de perder alguém, usar a cartada "sou órfã e sou insegura assim por isso”, eu enlouqueceria mais gente. Basta eu. E se tem uma coisa que levo a sério é esse negócio de viver em sociedade, no mais amplo significado que ele traz. Sou melhor com metáfora de faxina: ninguém tem responsabilidade sobre a minha louça suja, embora viver junto seja vez ou outra lavar uns pratinhos de quem você ama.
Tenho achado incômodo também o lance de quase todo mundo ter ou querer ter um diagnóstico de transtorno. Terapia está em dia, sim. Acho importantíssimo todo mundo cuidar da saúde mental e se medicar quando realmente precisa. Mas o quanto tantas siglas que vêm dos consultórios em laudos acabam virando muleta para tratar os outros de uma maneira que não é muito legal? Por que a gente é o que é, isso está claro. Mas com aquela dosezinha em desuso de meritocracia só para dar polêmica e apanhar das visitas: tem hora que querer é poder, sim. E tem hora que não dá, claro — cabe a todo mundo que está em volta entender as limitações reais de quem nos cerca.
Por isso adorei essa entrevista da Juliana Belo Diniz. A psiquiatra diz que a presença da saúde mental na cultura pode ajudar a tirar o tabu de quem sofre, mas também cria outros fenômenos menos favoráveis, como a patologização e o excesso de diagnósticos e prescrições. O livro chama "O que os psiquiatras não te contam" (Fósforo Editora) e ela fala sobre o impacto das telas na saúde mental e como a gente deveria olhar mais para a sociedade do que para o indivíduo. Há, ainda, o recorte de classe. Só tem o laudo quem paga por ele. A massa segue tocando a bola no meio de campo sem nem ter chuteira.
“Estamos criando pessoas que não toleram relações humanas. Tudo é gatilho, tudo é intolerável, então eu me fecho dentro da minha casca, vivo no meu mundo controlado na internet e só faço o que eu gosto. Mas a vida não permite isso. Ela está o tempo todo pedindo para você fazer coisa que não quer, se relacionar com pessoas que talvez você não goste, fazer coisa chata.”
Fazer coisa chata. Não tem nada mais vida real que coisa chata. Fazer coisa chata pelo outro. Fazer coisa chata por quem você nem conhece. Enfiar a violinha do ensimesmamento no saco e verdadeiramente ver as pessoas.
O crachá do desorganizado pode virar um pouco mais de atenção aos próprios pertences? O machismo não é distúrbio, apesar de parecer estar tão encravado em você, e dá para se policiar (muito) e ser diferente. Ser sedentário não é uma característica pessoal, é um estado que pode se transformar com movimento. O mesmo vale para a patologização de alguns pontos que na verdade se tratam de questões da sociedade.
Ou, em tradução de Luciana barraqueira: não é só a doença que te impede de aturar o mundo, é você que ficou meio preguiçoso porque seu streaming é menos confrontador que as pessoas que de fato existem lá fora.
Esse trecho aqui da fala da Juliana me pegou demais:
A partir do momento que um psiquiatra fala para alguém “Você tem um transtorno bipolar”, a chance daquela pessoa se comportar como uma bipolar efetivamente muda. Vai interpretar tudo naquela chave. Há muito tempo a gente tem a consciência de que a psiquiatria molda certos caminhos e que precisamos tomar cuidado com a maneira como a gente leva isso para o discurso cultural.
Ui.
E, sim, bagulho está difícil para todo mundo, a gente acorda sem o sono reparador porque tem um chip grudado em nosso cérebro cantando o que devemos sonhar. É, primeiro episódio de Black Mirror S.7, como disse o Agualusa, não é ficção especulativa e, sim, documental.
No meu caso, todo um universo onírico se passa em horas de web whatsapp ENQUANTO durmo. Sonho um sonho inteiro escrito, na tela do zap. E acordo exausta — por que será? Não sei se dá para piorar (deve dar), mas melhorar dá. E não é medicando o sintoma, é tesourando a causa.
Sempre acho que a arte é o grande lance para fazer quase tudo isso que está aí virar outra coisa. A gente segue tentando combater as paradas com o bom e velho se enternecer? Tô dentro. Ou, como diz minha música favorita: "Mas só não me deixará doido porque isso, sô, isso já sou”
3 coisas legais e uma mais ou menos
LOL com Porta dos Fundos, na Prime
Reality engraçadíssimo com elenco [emoji de pedra preciosa] tentando não rir. Me lembrou muito qualquer encontro com meus amigos — com é bom ter intimidade, meu pai do céu. Misturei o Papa Francisco na resenha do programa pra o UOL pq sim. Tá aqui.
Cem quilos de ouro [e outras histórias de uma repórter], do Fernando Moraes
Li quando fui para a Amazônia, em 2012, e achei na estante em uma arrumação outro dia. Reli minha reportagem favorita “O sonho da Transamazônica acabou", de 1974, quando o governo decretou o fim das obras. Ele atravessou a estrada (deserta) de ponta a ponta e fez o texto para o JT constatando que não tinha valido a pena fazer a estrada. Eu estive em um trecho em Altamira há 13 anos e ela estava deserta ainda. Acho impressionante como o projeto de destruir a Amazônia dura séculos, se aprimora e a magnitude da floresta continua lá. Um dia eles conseguem, eu sei. Mas que a danada dá trabalho para cair, ela dá.
Aliás, legal a matéria que a Super Interessante deu sobre civilizações ocultas na Amazônia. A capa da revista é sobre um assunto que eu amo, os povos indígenas isolados.
Entrevista da Carol Dieckmann para Maria Fortuna
Ela fala do uso de álcool da mãe se uma maneira muito interessante (o que é patologia e o que é anestesia voluntária?) e conta um jeito legal de driblar a fama de antipática — sendo simpática é o spoiler.
A coisa mais ou menos
Menti na semana passada sobre O Estúdio, da Apple TV. Avancei nos episódios e estou achando uma chatice sem roteiro com piada para o pessoal do meio. Piada interna por piada interna, fico com o Porta dos Fundos mesmo, obrigada. Mas, sim, passa o tempo.