#2 Como você dá conta de tudo? Eu faço tudo mal
O fake fenômeno do multitask, descanso produtivo e o que tenta me ensinar um gato que eu nem ia adotar
Foi em dezembro, quando o ilustrador e designer Gustavo Bacan apareceu na câmera de vídeo, em uma reunião, com quatro gatinhos no braço. Os felininhos resgatados tinham uns 15 cm de comprimento e uma carinha de desespero que mobilizou a família toda: “querem um?”, ele disse. Quisemos. Bem branquinho, para contrastar com nossa gata preta – e nunca mais podermos usar roupa nem preta nem branca de tanto pêlo grudado (mas isso só entendi depois).
Já na casa dele, peguei o filhote nas mãos meio incrédula de que estava fazendo uma loucura dessas na véspera da viagem de férias. O problema é que quando virei as costas com aquela coisinha na mão, escutei o miado mais triste na história – vinha do irmão dele, desesperado e sozinho, que havia ficado na cama. “Vamos levar os dois?”, meu marido disse. Olhei para ele indignada. Um segundo depois, eu estava com os dois filhotes no colo, no banco de trás do carro.
Foi assim que o Petit e o Gateau vieram morar aqui em casa. No dia seguinte, já abrasileiramos para Gatô por motivo de criança em alfabetização na residência. O convívio com a Mia não tem sido muito pacífico (ela odiou) e os irmãos pequenos viraram dois bois de 4 kg em cinco meses (e parecem felizes). Ok, agora temos três gatos. Segura aí que já conto o resto.
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Quando terminei “O que resta a partir daqui”, da Flávia Braz, estava sufocada pela narrativa. Divórcio, caos familiar, finitude e um monte de outras expressões que rondam a vida de quem tem 40+ em 2025. Decidi ler alguma bobagem para não pensar em nada e escolhi na estante o hit “Vou te receitar um gato”, um best seller japonês de qualidade duvidosa em que um terapeuta receita gatos para as pessoas que vão para seu consultório com problemas variados. Li a considerada “ficção de cura”, um novo tipo de literatura que tem feito sucesso, para entender de que se tratava. São 200 páginas muito fáceis que fluíram em algumas horas e achei que nunca mais pensaria no assunto.
Mas li com um olho no livro e outro no gato, quer dizer, no Gatô. E foi aí que veio o insight.
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Gatô não entendeu que é um gato. Ele acha que vai abrir a geladeira e escolher o que comer. Ele tem certeza de que poderia pedir algo no iFood. Ele tem convicção de que administra meu tempo melhor que eu. Ele salta (já falei que virou um boi?) do chão diretamente para cima do meu colo quando estou com o notebook no sofá. E se acomoda. Gatô, dá licença, eu tô trabalhando. Não adianta. Gatô, apesar de ter seu nome abrasileirado, não fala português. E eu não falo francês, ou não teria batizado o outro touro de Petit.
Gatô se acomoda em cima de mim no meio das frases que escrevo. Eu tiro. Ele volta com o mesmo salto. E aterrissa no meu peito. Se tento driblar a presença, ele enfia a cabeça na minha mão direita e se auto acaricia. Gatô não está para brincadeira. Não tem como trabalhar enquanto ele quiser carinho. O bichinho é o mecanismo da pausa que me faltava. Epa, pera.
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Venho há anos pensando no fenômeno multitask – que, aprendi posteriormente, nem existe. O que pode rolar é um task switching em que seu cérebro troca rápido de atividade e volta para a anterior e vai de novo. O resultado é o título da news: você faz muita coisa, e nada direito. A minha primeira coluna no Uol, em 2017, já foi sobre o assunto. De lá para cá, só piorei. Será que estamos fazendo coisas demais ao mesmo tempo?, eu pergunto no título. Oito anos depois, em vez de atender ao telefone, como cito no texto, eu estou respondendo a 15 áudios simultâneos. Tudo muito mal. O texto envelheceu bem, infelizmente. Eu identifiquei o erro e disse que estava ciente e queria prosseguir errando:
“Em quantas abas você opera? Não sei muito bem como se deu esse cérebro que lida com o maior número de frentes possíveis ao mesmo tempo. Quando eu percebi, já estava assim. Foi em algum momento entre o dia em que o antigo MSN virou ferramenta de trabalho e o dia em que tinha uma galera que só podia abrir o Gmail no escritório e as janelas começaram piscar em laranja. Foi quando deixar de responder um e-mail que caiu no Outlook, por mais que estivesse imerso em cálculos, concentradíssimo, começou a pegar muito mal. Eu não sei se foi antes ou depois do Orkut, só sei que a última vez que a gente se deu ao luxo de fazer uma coisa de cada vez foi há muito tempo. Peraí, preciso responder minha mãe aqui”, diz o texto de estreia no UOL.
Hoje, nesse 2025 em que meu filho já toma banho sozinho e sabe escrever Gatô com circunflexo, continuo na mesma draga. Com um bônus. Mesmo sem parar um minuto de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, durmo e acordo com a sensação de culpa de que deveria estar fazendo mais.
Cobrança por foco, por controle, por rendimento, aliás, são tema do Vibes em Análise (podcast que eu amo) no episódio Culto ao Autocontrole.
“Não dá pra viver no descontrole, mas também não vai dar pra só alimentar uma contínua guerra contra si mesmo”, alertam os psicanalistas no programa, enquanto eu travo uma guerra contra mim mesma correndo na esteira. “O sujeito contemporâneo está condenado ao mundo dos pensamentos que não consegue transformar em ações”, eles completam enquanto eu “morro” nos 3,5 km no dia em que a meta era correr 5. No programa, eles abordam um dos meus tantos pecados: o descanso produtivo. Eu visito museus anotando recados para mim mesma para trabalhar depois.
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O La Nación publicou uma reportagem sobre o mito de fazer tanta coisa simultaneamente. Durante muito tempo, supunha-se que as pessoas mais bem-sucedidas conseguiam realizar várias tarefas ao mesmo tempo, mas hoje sabemos que apenas quem se concentra e não se distrai alcança melhor desempenho — afirma o professor de comunicação Clifford Nass, pesquisador da Universidade de Stanford e autor de um estudo sobre produtividade e multitarefa.
Ser produtivo, os especialistas explicam, não é dar conta de mil tarefas. Se realizou apenas uma, já produziu. Nossa, sério? Ufa. Gatô acorda, se enrola em si mesmo, e dorme de novo.
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Estou em débito com quem? “Em vez de ver o ato de fazer uma coisa por vez como algo a evitar, deveríamos resgatá-lo como um espaço para estar presente e nos reconciliarmos com um fazer genuíno, que nos aproxima do essencial”, sugere a poética reportagem que também garante: quem para de ouvir podcasts enquanto se exercita vai melhor nos exercícios. Posso comprovar – as melhores corridas que fiz são quando ouço apenas minha respiração, sem podcast, música ou mesmo fones. É isso que é estar presente?
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O jornalista e leitor profissional Rodrigo Casarin escreveu aqui também sobre a ansiedade de ler tantos livros. É vontade de ler mais ou apenas achar que estamos em débito? E com quem? “Talvez um leitor consiga ler dois, três livros numa semana”, ele diz no texto enquanto eu grito internamente COMO ASSIM TRÊS LIVROS EM UMA SEMANA, RODRIGO? E olha que esse homem não vai nem tocar em ficção de cura japonesa para ler em poucas horas.
“Se você não chega nem perto disso, não se preocupe, não estamos numa competição”, ele continua e eu respiro aliviada e vou montar a lancheira da criança com fruta, proteína e carboidrato. Não dá para fazer tudo, eu sei. Mas saber que nem o Casarin vai conseguir me deixa menos sozinha.
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Joaquim Ferreira dos Santos disse, dia desses, que o grande trunfo do cronista é ter um animal de estimação. Enquanto escrevo esse texto, Gatô dorme na mesa, ao lado do meu computador. Às vezes, levanta, se espreguiça e me olha: zupt, pula no meu colo e monopoliza minha mão direita em um carinho exigido. Eu cedo e só respiro.
Syou Ishida, a autora do best seller dos gatos, tem um ponto, sim. Eu não sabia muito bem porque aquele pequenininho miava tanto para eu trazê-lo também quando peguei seu irmão no colo. Mas vou aprendendo.
3 coisas legais e uma mais ou menos
Nós, da Tamara Klink
Eu amei o relato do livro e a ideia de deixar a paixão em stand by (ela havia acabado de começar um namoro) e atravessar o mundo em um barquinho. Também tem o puxão de orelha do Amyr Klink em todos os pais que acham que precisam fazer tudo pelos filhos (o cara empurra a filha do ninho sem dó e fica impressionado dela chegar viva). Aliás, nada a ver com o assunto, mas um pouco: boa essa entrevista sobre a importância de deixar as crianças se frustrarem.
O Estúdio, na AppleTV
Tem um monte de metáfora e piada interna para a galera do cinema hollywoodiano e participações variadas: de Scorsese ao Zac Efron. Mas mostra a prisão em que vive a pessoa insegura que quer agradar para ser admirada (amada?) por todos. Medo.
Expo Ney Matogrosso, no MIS
Vai só até dia 21/4, mas o texto do Julio Maria me pegou logo na entrada: “A lição que fica? Ninguém pode vencer um homem que está sempre pronto para deixar tudo, pegar a mochila e partir em busca de si mesmo.” Rapaz, é isso, né?
No fim, as três coisas legais têm tudo a ver uma com a outra.
A (bem) mais ou menos: Aqui, na Prime
Meio enfadonho, meio pretensioso, o filme conta a história dos EUA sem mudar o ângulo da câmera. Dos dinossauros à Covid, tudo acontece nos mesmos metros quadrados de um lugar qualquer da Grande América. Mas vi inteirinho pensando nas histórias e vidas (e lutos) que guardam as paredes que abandonamos. Tem Tom Hanks rejuvenescido por IA também – e isso não é um atributo do filme.
Luciana, do lugar onde estou - 65 anos, filha criada, tendo passado por tudo o que passei, acho que fui muito exigente comigo e injusta também. Hoje questiono esse olhar de "fazer tudo bem ou certo". Quem tem essa régua na mão - eu ou os outros? Eu fiz o que consegui. Fiz meu melhor com os recursos que tinha e para os que me julgaram eu digo: como você faria se...(e falo todas as condições). Fiz meu melhor! Acordei e acordo todos os dias tentando dar o meu melhor. Você conhece alguém que faz algo querendo que dê errado, seja mal feito? Eu só conheço gente que dá seu melhor. Beijos, amada.
Estamos juntos nessa de não conseguir fazer tudo, não tem jeito - e digo isso olhando aqui pro tanto de sério, jogos de videogame, filmes e tals que tenho pendentes. Afagos para o Petit e para o Gatô :)